O vento açoita com força enquanto as ondas se estilhaçam contra os penhascos. Nesse cenário natural, um silêncio profundo parece envolver um canto esquecido: o Cemitério dos Ingleses.

Que histórias estão escondidas por detrás dessas muralhas? Que ecos do passado ressoam num lugar onde o mar e a terra se encontram num duelo eterno? Às vezes, os locais mais inesperados revelam relatos interessantes. Neste espaço, cada pedra, cada cruz, cada nome é um fragmento de uma história que merece ser descoberta e compreendida.

 

A história na Costa da Morte

O Cemitério dos Ingleses encontra-se em Camariñas, um município da Costa da Morte, famosa pela sua costa abrupta e perigosa.

Este cemitério surgiu após o naufrágio do HMS Serpent, um cruzador torpedeiro britânico que se afundou no final de 1890. Dos 175 tripulantes, apenas 3 sobreviveram. Os corpos recuperados foram sepultados numa colina próxima, que foi posteriormente consagrada para tal fim.

O mar arrojou durante dias os corpos na praia de Trece. Os vizinhos de Xaviña e Camariñas colaboraram para sepultar os falecidos. O padre local consagrou o terreno, que já continha restos de outro naufrágio anterior, o do Iris Hull em 1883.

Assim, nasceu o Cemitério dos Ingleses, um espaço dedicado às vítimas de vários naufrágios na zona.

 

Detalhes do naufrágio do HMS Serpent e o seu impacto

O HMS Serpent zarpou de Plymouth a 8 de novembro de 1890 com destino a Serra Leoa. Transportava 175 homens, entre oficiais e tripulação.

Na noite de 10 de novembro, uma tempestade e a fraca luz do farol de Cabo Vilán provocaram que o navio encalhasse nas rochas de Punta do Boi. O comandante Harry Leith Ross ordenou abandonar a nave, mas apenas 3 marinheiros sobreviveram. Durante semanas, o mar devolveu corpos à costa. Os vizinhos organizaram a recolha e sepultamento.

Este desastre causou comoção na Galiza e na Marinha Real britânica. Como consequência, foi imposta a obrigatoriedade de levar coletes salva-vidas em todos os barcos da Royal Navy, melhorando a segurança marítima.

 

Arquitetura e características do cemitério

O recinto ocupa cerca de 3.000 metros quadrados e está rodeado por um muro de pedra com grades de ferro. A entrada principal tem um arco com a inscrição “British Cemetery“. As tumbas apresentam cruzes simples de ferro, pedra ou madeira. Algumas lápides de mármore foram trazidas da Europa e destacam-se entre as sepulturas.

O design do cemitério é concêntrico: no centro estão enterrados os oficiais e na periferia a tripulação. Originalmente, havia uma divisão entre católicos e protestantes, mas foi eliminada após uma restauração em 1990.

É um lugar sóbrio, respeitador do ambiente e da memória dos falecidos.

 

A solidariedade da comunidade local e o reconhecimento britânico

Após o naufrágio, a comunidade de Camariñas demonstrou uma grande humanidade. O padre de Xaviña organizou o sepultamento e o apoio aos sobreviventes. A Marinha Real britânica agradeceu esta ajuda com presentes simbólicos: um barómetro para o povo, um relógio de ouro para o prefeito e uma espingarda para o padre.

Durante anos, barcos de guerra britânicos visitaram o local para prestar homenagem com salva de tiros e coroas de flores. Este reconhecimento reflete a importância da cooperação entre povos face a tragédias marítimas.

 

O cemitério como ponto de interesse turístico e cultural

Hoje, o Cemitério dos Ingleses é muito mais do que um local de descanso: faz parte da Rota Europeia de Cemitérios Singulares, o que o coloca como uma atração turística e cultural de relevância internacional.

Localizado num ambiente imponente frente ao oceano Atlântico, na plena Costa da Morte, este pequeno lugar é testemunho de tragédias marítimas e da profunda relação entre o ser humano e o mar. A sua atmosfera convida à reflexão e à memória, tornando-o uma paragem obrigatória para os viajantes que buscam experiências com significado.

Muito perto dali encontra-se o monte Branco, uma duna gigante que oferece vistas impressionantes e um ambiente natural único. A combinação de história, paisagem e património torna esta zona um destino completo, ideal para quem deseja conhecer a Costa da Morte sob uma perspetiva cultural e emocional.

 

Como chegar e recomendações para a visita

Para visitar o Cemitério dos Ingleses, o primeiro passo é tomar a estrada AC-432, que atravessa parte da Costa da Morte. Na altura de um restaurante próximo, verás um sinal que indica o desvio para o local.

A partir daí, acede-se por um caminho rural que, embora estreito, está em bom estado e bem sinalizado. O trajeto é curto e simples. Isso permite desfrutar da paisagem durante o caminho. O ambiente natural é tranquilo, silencioso e propício a uma visita serena, sem pressas.

Uma vez no local, recomenda-se caminhar com calma e prestar atenção às inscrições e aos detalhes das lápides, muitas das quais refletem a tragédia dos marinheiros naufragados.

É importante recordar que se trata de um espaço com grande carga simbólica, pelo que se deve manter sempre uma atitude de respeito.

Além disso, a zona oferece a possibilidade de realizar rutas de caminhada ou trechos de peregrinação, já que muitos viajantes incorporam este local como paragem no seu caminho espiritual ou cultural. A união de mar, história e paisagem cria uma experiência única.

O Cemitério dos Ingleses transcende a sua função funerária: é um lugar de memória, um símbolo de tragédia, solidariedade e respeito diante da força do oceano. Visitá-lo é uma forma de prestar homenagem aos que perderam a vida nestas costas e de manter viva a história num canto profundamente emotivo.

 

Conexão com rotas de peregrinação e caminhos para Santiago

Muitos peregrinos sentem que o Caminho não termina na praça do Obradoiro. Depois de chegar a Santiago de Compostela, começam uma segunda etapa, mais íntima e contemplativa: a rota até ao fim do mundo, aquele lugar onde a terra parece render-se ao mar. É então que surge no horizonte a Costa da Morte, e nela, o Cemitério dos Ingleses.

Embora não faça parte do percurso oficial do Caminho de Finisterra ou Muxía, a sua proximidade com esta última localidade tornou-o num desses desvios que muitos escolhem tomar por vontade própria. A apenas alguns quilómetros de Muxía, visitar este local é uma maneira de fechar a viagem num espaço que, como o próprio Caminho, fala de perda, de humanidade e de transcendência.

  • São muitos os que, após percorrer o Caminho desde Ribadeo, se aventuram pela costa à procura de respostas diferentes daquelas que se encontram entre pedras milenares e praças monumentais.

 

  • Aqueles que fizeram o Caminho desde Bilbao trazem consigo a memória dos penhascos do norte, do mar como guia constante, e encontram em Camariñas e suas costas uma espécie de eco emocional.

 

  • E aqueles que viveram a experiência do Caminho desde Tui descobrem neste cemitério um contraste poético: do verde do Miño ao cinza do Atlântico, da azáfama do caminho à calma deste lugar afastado.

 

Até mesmo aqueles que optaram por um Caminho de Santiago organizado agradecem poder adicionar, ao terminar a sua rota, este canto carregado de simbolismo. Porque a viagem continua, embora os pés se detivessem. Porque alguns lugares, como este cemitério aberto ao mar, não estão nas guias nem marcados com setas amarelas, mas deixam marca. Uma marca distinta, que permanece.